quinta-feira, 9 de maio de 2013

Passado e presente: um pouco da história das mobilizações da UNESP [I]



Talvez seja um traço característicos de todas as instituições dominantes e dominadoras não reconhecer as lutas dos dominados contra a situação de opressão posta ou, no mínimo, a busca por reinscrevê-las na ordem bem firmada das coisas. A recusa em admitir que conflitos possam originar mudanças pode ser mesma constitutiva dos senhores, mas a memória coletiva e o fulgor dos embates consegue, vez ou outra, furar as barreiras postas. Recentemente, por conta do processo de Ocupação da direção da UNESP-Marília, um homem já bem maduro, vestido com roupa sport, de cabelos grisalhos e óculos escuros, acompanhado de sua esposa e de uma jovem, que estava na universidade por conta de um evento acadêmico, sentiu-se atraído a contar um pouco como eram as coisas nos anos em que estudara filosofia na capital da alimentação, na mesma instituição hoje ocupada pelos estudantes, em luta por políticas plenas de permanência estudantil e contra as falsas cotas que o PIMESP pretende impor, tratando-se em fato de um grave ataque neoliberal, além da democratização da universidade, cujos regimentos são dos anos de chumbo da ditadura civil-militar. Sentado frente a frente com os estudantes, embalados pelas discussões coletivas, narrou o seguinte.

*

Houve ocupação do cemitério; foi assim que se conseguiu a moradia estudantil aqui em Marília. Em 87, ano em que entrei na filosofia, o DCE, ainda novo, fundado em 83, 84, estava um pouco desorganizado. Os Conselhos de Entidades da UNESP, CEU, aconteciam mensalmente, eles aconteciam lá no prédio do centro, lá perto do Tobias Aguiar em São Paulo. Nós éramos contra o DCE aparelhado, lutamos muito contra o PCdoB, muito forte lá em Bauru, mas também contra o PT. Na época, uma das questões que eram fortes era o encampamento das faculdades de Medicina, a FAMEMA e a FAMERP, e também do que hoje é a UNESP de Prudente, então um instituto municipal, e a Universidade de Bauru, depois UNESP.

Era diferente. A UNESP recebia 0.6% do ICMS, porque era só 1.9% do ICMS para as três, porque isso decorria da decisão constitucional da autonomia financeira da universidade. O ICMS não poderia ter vinculação, porque acabava com a autonomia da universidade

Depois do cemitério, ocupamos as salas de aula da universidade, trouxeram geladeira, fogão, e cada um tinha só um espacinho, que a gente chamava de burgo. Lembro do Jorge, muito ativo, próximo ao PT. Tinha também o Edmundo, hojé é professor lá em São Paulo. A polícia veio em 87 para reintegrar as salas de aulas: a reitoria estava cobrando muito a desocupação. Os estudantes decidiram que resistiriam, e que iriam se acorrentar no portão do Prédio de aulas, já que se a polícia quisesse entrar, teria de passar pelos manifestantes. Diante da posição dos estudantes, a congregação recuou. Era constante a presença da SP2, polícia secreta do estado, e todo mundo sabia que a ditadura não tinha acabado com a eleição do Sarney; muitos militares ainda esperavam voltar ao poder, só desistiram mesmo quando os estudantes derrubaram o Collor.

Tinha muitos ataques morais ao movimento. Quando estavam construindo o CCI [Centro de Convivência Infantil, creche da faculdade], acusaram os estudantes de entrarem lá e quebrar o azulejo, de fazer sexo, de um monte de coisas. Uma vez me acusaram de estar fazendo sexo em uma sala e o diretor me chamou pra conversar. Ele disse que iria abrir uma sindicância pra apurar os fatos, e eu disse que apoiava, porque estava viajando de manhã, tô com a passagem aqui no bolso, e eu quero saber quem comeu minha namorada.

Não tinham tantos cursos como agora. Era só filosofia, ciências sociais e pedagogia...ah, e biblio. Depois veio a fono. A gente achava que os cursos de saúde tinham vindo pra quebrar o movimento, a humanas era muito unida, fazia muita coisa e eles não gostavam. Mas, de nós, o curso mais reacionário era a pedagogia, que tinha críticas baixas, dizia sempre que a gente era sujo, e coisas assim.

A reitoria estava inerte, mas dizia que a ocupação do prédio não iria continuar. O DCE ameaçava parar toda a universidade. O [Paulo Milton Barbosa] Landim, que era o reitor, me desafiou a parar a universidade, lá na reitoria; o prédio ficava lá na Sé. Nós paramos tudo em 88, até a medicina em Botucatu, tudo com trabalho de base do DCE. Então, a reitoria mudou a postura. Nós fizemos duas ocupações do Conselho Universitário. A reitoria sempre tentava mostrar que os estudantes eram uns porras-loucas, que eles não queriam a moradia de verdade.

Marília só desocupou quando a moradia foi construída. Tinha a proposta da reitoria de alugar casas, mas os estudantes não queriam isso, porque sabiam que iriam se desmobilizar. Lembro do Jorge falando. Construíram a moradia no meio de um cafezal. Então nós ocupamos um ônibus da Circular para fazer uma manifestação. O motorista disse 'muito bem!' e nos levou até a delegacia, e depois nós fomos pra prefeitura pra negociar. As meninas eram assediadas e tinha que cruzar o cafezal pra chegar na moradia. Imagina só, e à noite. Eles queriam criminalizar o movimento dizendo que nós eramos uns drogados, que a gente tinha coisa com droga.

A greve de 89 foi puxada pelos professores. Eles desprezavam os estudantes e o movimento era pacífico. Claro que tinha também as questões salariais. E o governo não se importava muito com a greve das universidades; educação não é prioridade nem nunca será enquanto vivermos no capitalismo. Ele não queria resolver a situação, não havia urgência. Somente quando quebramos a ordem nos ouviram. Tinha as reuniões, tinha o movimento nacional. Desse ai eu dizia: 'a UNE não UNE, ela desUNE'. Foi o CRUESP que deu o ICMS, sem apoio do movimento, foi a portas fechadas [Em 89, as universidades paulistas garantiram com a greve uma quota-parte do ICMS de SP].

Muitos professores estavam no movimento, mas também tinham professores contrários ao movimento. Eles nos acusavam de invasão, mas nós dizíamos que os estudantes não tinham invadido nada, que é público, que eles ocuparam o que é público. Alguns professores falavam que eram a favor da pauta do movimento, mas contra a forma.

Nós queríamos que a moradia fosse dentro do campus. Mas eles chegaram e disseram, ou vai ser lá onde é hoje ou no Santa Antonieta ou na zona sul [bairros periféricos da cidade de Marília]. Para que fosse no campus, precisaria que uma parte do território fosse desmembrado, porque a direção não pode mandar lá na Moradia. Tinha muitos contatos entre estudantes e trabalhadores; já os professores viam a UNESP como um trampolim pra USP e pra UNICAMP.

O [Jayme] Gasparotto [ex-diretor do campus de Marília] era do PCB, foi preso pela ditadura, cumpriu pena no quartel em Lins. O [Antônio Carlos] Mazzeo já era professor. A Valéria [Barbosa, hoje professora da UNESP-Marília] era estudante; o Haroldo, não, Heraldo [ex-vice Diretor em Marília], este desde sempre foi nessa postura [conservadora]. O curso de Ciências Sociais estava se estruturando, ainda não tinha linha política definida. Lembro que um professor, o Márcio Teixeira, fez uma carta dizendo que os professores tinham que se inspirar nos estudantes para romper a apatia do movimento, para melhorar a universidade. E que toda mudança vem pelo conflito. Não se tinha os professores de esquerda, e definir uma pessoa como sendo de esquerda é difícil, porque só teoria não torna ninguém de esquerda.

Com os trabalhadores era mais difícil; eles tinham uma postura contra, gostavam de criar fatos com coisas pequenas. Mas eles se acostumaram com o movimento. Os motoristas eram próximos, eles entendiam mais o movimento, eles viajavam muito conosco e nós éramos amigos. Mas no geral, eles não se movimentavam nem mesmo pela questão salarial.

Nós do movimento tínhamos muita preocupação em conhecer a legislação para defender os estudantes. Muitas vezes tinha-se de ir até o Conselho Universitário para reverter a situação, tinha muito abuso. Aqui no campus não tinha terceirização nenhuma, ela veio depois que eu me formei, então, depois de 92. Eu me lembro que a gente debatia a questão do uso de animais em experimentos com a fono, e proibimos no campus, mas tinha professor que ia pra casa com os estudantes e fazia os experimentos.

Eu acho que a forma como a UNESP cresceu, desordenadamente, não foi à toa, mas pensado. Foi pra desorganizar: se a universidade é desorganizada o movimento estudantil vai ser também.

Na minha época a única bolsa que tinha era a bolsa PAE [atual Bolsa BAAE, de critério socioeconômico], mas ela era insignificante no valor e no número. Quem era responsável era a Ediley Montenegro de Botucatu. Mas não basta entrar na universidade, tem de sair dela também. E só existia a PAE. Nós debatemos muito o processo de seleção dos bolsistas. No final a Congregação aceitou a participação dos estudantes. Mas a Congregação queria dar o peso meritocrático. Eles desprezavam o tempo que a gente dava pro movimento, e queriam que a gente se formasse em quatro anos. Discutimos localmente e na reitoria também. Nós éramos a maioria, e como os trabalhadores votavam com a gente, éramos maioria absoluta. A comissão tinha nove ou dez pessoas, e éramos 3 ou 4 estudantes, éramos quarenta por cento dos votos.

Do DCE, eu fui do DCE. Entre 87, quando entrei, até 91. Tinha o Congresso que era anual e tinha o CEU, mensal. Era ele que controlava o DCE; ocorria lá nos porões do prédio perto do Batalhão da ROTA. Nesse prédio funcionava a FATEC e ela ainda fazia parte da UNESP. A gente tinha contato com a USP e com a UNICAMP. O Hamilton Lacerda era do DCE da UNICAMP, hoje ele trabalha com o Mercadante, ele já era próximo ao PT. Tinha contato com a USP também, mas com a UNICAMP era mais forte. Eu lembro da camiseta: 'USP, UNESP, UNICAMP: reestruturação das universidade públicas'. A gente fazia reuniões, ia à USP, ia à UNICAMP; mas não tinham tantas, umas duas por ano. O Fórum das Seis não existia. O PT dominava tanto o DCE da USP quanto o da UNICAMP. O PT não era isso aí, o PT era o partido da ética, da luta e toda a esquerda estava nele. Você não sabe como a LIBELU [Liberdade e Luta, corrente trotskista do PT, de forte inserção estudantil] era forte, porque era muito forte. Por isso tudo, os deputados eram próximos, falava que era do movimento estudantil e logo vinha o deputado. O PT não dominou o DCE da UNESP por nossa conta, eles chamavam a gente de independentes, e nós resistíamos muito. Sabíamos que se dominasse, perderíamos o DCE; todos sabiam, todos lutavam, todos se opunham. E não que não fossemos simpáticos àquele PT, a gente apoiou o Lula contra o Collor; dizíamos 'o vermelho contra o COLLORido', já que ele representava as velhas oligarquias e o coronelismo. Tínhamos simpatias ao PT e até me convidaram para entrar, mas eu dizia que só depois, eu queria ser independente no movimento estudantil. Muitos estudantes se engajaram na eleição do Lula. Era grande na universidade. Aqui, quem apoiava o Collor não tinha coragem de dar a cara.

Muita gente era do PT. Mas a gente, que eles chamavam de independentes, lutávamos muito contra o PT. A gente sabia que tinha polícia, então mentíamos, às vezes; dizíamos que faríamos o ato em lugar e a gente ia pra outro. Pra articular nos Congressos, falava que ia 'no banheiro'. O PCdoB também era difícil, ele queria dominar, fraudava listas. Lembro que, em um Congresso, vimos a lista de eleição dos delegados deles; sabíamos que eramos fraudados, e só barramos porque eu conhecia uma menina que o nome estava na lista, mas que não tinha assinado e ela estava no Congresso. A gente conseguiu impedir que o PCdoB ganhasse, mas foi somente por um voto! Eles ficaram raivosos, pediram pra recontar, mas foi um voto só mesmo. A Convergência Socialista [corrente do PT que originou o PSTU] era pequena, lembro que tinha em Araraquara. O PCdoB tinha em Franca e Bauru. Em Araraquara tinha o PT e a Convergência. Sabíamos que existia a Causa Operária [corrente do PT que originou o PCO], mas não tinha aqui. As correntes estavam nascendo, se estruturando.

O movimento estudantil da UNESP participava da UNE. Eu conheci o Orlando Silva [ex-ministro dos esportes, ex-presidente da UNE] e o Linderbergh [senador pelo estado do Rio de Janeiro, ex-presidente da UNE; eles vieram muto pra Marília, pra nos convencer a entrar na UNE, mas a gente não queria. O Jorge me disse anos depois: 'viu?!, se tivesse ido pra UNE hoje era ministro'. Eu pensava que a UNE era perda de tempo, não tinha frutos, era só a carteirinha. A UNE só fez algo na ditadura, e depois só serviu para formar quadros e eleitores.

A população era ainda muito reprimida, como eu te disse, ainda não tinha acabado a ditadura. Foi muito aos poucos que o povo aprendeu a participar politicamente, até porque a democratização veio de cima.

A queda da URSS não foi muito sentida pelo movimento estudantil. Não que a gente não soubesse que o capitalismo iria tomar tudo e fazer a merda que faz. Nem que a gente não discutisse as questões internacionais. Mas vinhamos de uma ditadura, o país era imenso, então a realidade nacional era muito mais presente.

Depois que a gente conquistou a moradia, sabíamos que o próximo passo era o R.U. Pensávamos que se o CEASA fornecesse diretamente, a universidade pagaria o preço de custo. Queríamos também solucionar a questão da biblioteca, porque faltavam muitos livros. Não se debatiam a questão das cotas, que tem de ter, pela questão histórica. Mas a gente já pensava na expansão e melhoria da Moradia

Depois, veio o FHC. O FHC veio com a LDB e ela veio pra disciplinar a universidade, porque eles pensavam igual a gente: que como estava não dava mais. Mas era a gente, e eram eles...

[FIM DO DEPOIMENTO]



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