Talvez
seja um traço característicos de todas as instituições dominantes
e dominadoras não reconhecer as lutas dos dominados contra a
situação de opressão posta ou, no mínimo, a busca por
reinscrevê-las na ordem bem firmada das coisas. A recusa em admitir
que conflitos possam originar mudanças pode ser mesma constitutiva
dos senhores, mas a memória coletiva e o fulgor dos embates
consegue, vez ou outra, furar as barreiras postas. Recentemente, por
conta do processo de Ocupação da direção da UNESP-Marília, um
homem já bem maduro, vestido com roupa sport, de cabelos
grisalhos e óculos escuros, acompanhado de sua esposa e de uma
jovem, que estava na universidade por conta de um evento acadêmico,
sentiu-se atraído a contar um pouco como eram as coisas nos anos em
que estudara filosofia na capital da alimentação, na mesma
instituição hoje ocupada pelos estudantes, em luta por políticas
plenas de permanência estudantil e contra as falsas cotas que o
PIMESP pretende impor, tratando-se em fato de um grave ataque
neoliberal, além da democratização da universidade, cujos
regimentos são dos anos de chumbo da ditadura civil-militar.
Sentado frente a frente com os estudantes, embalados pelas discussões
coletivas, narrou o seguinte.
*
Houve
ocupação do cemitério; foi assim que se conseguiu a moradia
estudantil aqui em Marília. Em 87, ano em que entrei na filosofia, o
DCE, ainda novo, fundado em 83, 84, estava um pouco desorganizado. Os
Conselhos de Entidades da UNESP, CEU, aconteciam mensalmente, eles
aconteciam lá no prédio do centro, lá perto do Tobias Aguiar em
São Paulo. Nós éramos contra o DCE aparelhado, lutamos muito
contra o PCdoB, muito forte lá em Bauru, mas também contra o PT. Na
época, uma das questões que eram fortes era o encampamento das
faculdades de Medicina, a FAMEMA e a FAMERP, e também do que hoje é
a UNESP de Prudente, então um instituto municipal, e a Universidade
de Bauru, depois UNESP.
Era
diferente. A UNESP recebia 0.6% do ICMS, porque era só 1.9% do ICMS
para as três, porque isso decorria da decisão constitucional da
autonomia financeira da universidade. O ICMS não poderia ter
vinculação, porque acabava com a autonomia da universidade
Depois
do cemitério, ocupamos as salas de aula da universidade, trouxeram
geladeira, fogão, e cada um tinha só um espacinho, que a gente
chamava de burgo. Lembro do Jorge, muito ativo, próximo ao PT. Tinha
também o Edmundo, hojé é professor lá em São Paulo. A polícia
veio em 87 para reintegrar as salas de aulas: a reitoria estava
cobrando muito a desocupação. Os estudantes decidiram que
resistiriam, e que iriam se acorrentar no portão do Prédio de
aulas, já que se a polícia quisesse entrar, teria de passar pelos
manifestantes. Diante da posição dos estudantes, a congregação
recuou. Era constante a presença da SP2, polícia secreta do estado,
e todo mundo sabia que a ditadura não tinha acabado com a eleição
do Sarney; muitos militares ainda esperavam voltar ao poder, só
desistiram mesmo quando os estudantes derrubaram o Collor.
Tinha
muitos ataques morais ao movimento. Quando estavam construindo o CCI
[Centro de Convivência
Infantil, creche da faculdade], acusaram os estudantes de
entrarem lá e quebrar o azulejo, de fazer sexo, de um monte de
coisas. Uma vez me acusaram de estar fazendo sexo em uma sala e o
diretor me chamou pra conversar. Ele disse que iria abrir uma
sindicância pra apurar os fatos, e eu disse que apoiava, porque
estava viajando de manhã, tô com a passagem aqui no bolso, e eu
quero saber quem comeu minha namorada.
Não
tinham tantos cursos como agora. Era só filosofia, ciências sociais
e pedagogia...ah, e biblio. Depois veio a fono. A gente achava que os
cursos de saúde tinham vindo pra quebrar o movimento, a humanas era
muito unida, fazia muita coisa e eles não gostavam. Mas, de nós, o
curso mais reacionário era a pedagogia, que tinha críticas baixas,
dizia sempre que a gente era sujo, e coisas assim.
A
reitoria estava inerte, mas dizia que a ocupação do prédio não
iria continuar. O DCE ameaçava parar toda a universidade. O [Paulo
Milton Barbosa] Landim, que era o reitor, me desafiou a
parar a universidade, lá na reitoria; o prédio ficava lá na Sé.
Nós paramos tudo em 88, até a medicina em Botucatu, tudo com
trabalho de base do DCE. Então, a reitoria mudou a postura. Nós
fizemos duas ocupações do Conselho Universitário. A reitoria
sempre tentava mostrar que os estudantes eram uns porras-loucas, que
eles não queriam a moradia de verdade.
Marília
só desocupou quando a moradia foi construída. Tinha a proposta da
reitoria de alugar casas, mas os estudantes não queriam isso, porque
sabiam que iriam se desmobilizar. Lembro do Jorge falando.
Construíram a moradia no meio de um cafezal. Então nós ocupamos um
ônibus da Circular para fazer uma manifestação. O motorista disse
'muito bem!' e nos levou até a delegacia, e depois nós fomos pra
prefeitura pra negociar. As meninas eram assediadas e tinha que
cruzar o cafezal pra chegar na moradia. Imagina só, e à noite. Eles
queriam criminalizar o movimento dizendo que nós eramos uns
drogados, que a gente tinha coisa com droga.
A
greve de 89 foi puxada pelos professores. Eles desprezavam os
estudantes e o movimento era pacífico. Claro que tinha também as
questões salariais. E o governo não se importava muito com a greve
das universidades; educação não é prioridade nem nunca será
enquanto vivermos no capitalismo. Ele não queria resolver a
situação, não havia urgência. Somente quando quebramos a ordem
nos ouviram. Tinha as reuniões, tinha o movimento nacional. Desse ai
eu dizia: 'a UNE não UNE, ela desUNE'. Foi o CRUESP que deu o ICMS,
sem apoio do movimento, foi a portas fechadas [Em
89, as universidades paulistas garantiram com a greve uma quota-parte
do ICMS de SP].
Muitos
professores estavam no movimento, mas também tinham professores
contrários ao movimento. Eles nos acusavam de invasão, mas nós
dizíamos que os estudantes não tinham invadido nada, que é
público, que eles ocuparam o que é público. Alguns professores
falavam que eram a favor da pauta do movimento, mas contra a forma.
Nós
queríamos que a moradia fosse dentro do campus. Mas eles chegaram e
disseram, ou vai ser lá onde é hoje ou no Santa Antonieta ou na
zona sul [bairros periféricos da cidade de
Marília]. Para que fosse no campus, precisaria que uma
parte do território fosse desmembrado, porque a direção não pode
mandar lá na Moradia. Tinha muitos contatos entre estudantes e trabalhadores;
já os professores viam a UNESP como um trampolim pra USP e pra
UNICAMP.
O
[Jayme] Gasparotto
[ex-diretor do campus de
Marília] era do PCB, foi preso pela ditadura, cumpriu pena
no quartel em Lins. O [Antônio
Carlos] Mazzeo já era professor. A Valéria [Barbosa,
hoje professora da UNESP-Marília] era estudante; o
Haroldo, não, Heraldo [ex-vice
Diretor em Marília], este desde sempre foi nessa postura
[conservadora]. O
curso de Ciências Sociais estava se estruturando, ainda não tinha
linha política definida. Lembro que um professor, o Márcio
Teixeira, fez uma carta dizendo que os professores tinham que se
inspirar nos estudantes para romper a apatia do movimento, para
melhorar a universidade. E que toda mudança vem pelo conflito. Não
se tinha os professores de esquerda, e definir uma pessoa como sendo
de esquerda é difícil, porque só teoria não torna ninguém de
esquerda.
Com
os trabalhadores era mais difícil; eles tinham uma postura contra,
gostavam de criar fatos com coisas pequenas. Mas eles se acostumaram
com o movimento. Os motoristas eram próximos, eles entendiam mais o
movimento, eles viajavam muito conosco e nós éramos amigos. Mas no
geral, eles não se movimentavam nem mesmo pela questão salarial.
Nós
do movimento tínhamos muita preocupação em conhecer a legislação
para defender os estudantes. Muitas vezes tinha-se de ir até o
Conselho Universitário para reverter a situação, tinha muito
abuso. Aqui no campus não tinha terceirização nenhuma, ela veio
depois que eu me formei, então, depois de 92. Eu me lembro que a
gente debatia a questão do uso de animais em experimentos com a
fono, e proibimos no campus, mas tinha professor que ia pra casa com
os estudantes e fazia os experimentos.
Eu
acho que a forma como a UNESP cresceu, desordenadamente, não foi à
toa, mas pensado. Foi pra desorganizar: se a universidade é
desorganizada o movimento estudantil vai ser também.
Na
minha época a única bolsa que tinha era a bolsa PAE [atual
Bolsa BAAE, de critério socioeconômico], mas ela era
insignificante no valor e no número. Quem era responsável era a
Ediley Montenegro de Botucatu. Mas não basta entrar na universidade,
tem de sair dela também. E só existia a PAE. Nós debatemos muito o
processo de seleção dos bolsistas. No final a Congregação aceitou
a participação dos estudantes. Mas a Congregação queria dar o
peso meritocrático. Eles desprezavam o tempo que a gente dava pro
movimento, e queriam que a gente se formasse em quatro anos.
Discutimos localmente e na reitoria também. Nós éramos a maioria,
e como os trabalhadores votavam com a gente, éramos maioria
absoluta. A comissão tinha nove ou dez pessoas, e éramos 3 ou 4
estudantes, éramos quarenta por cento dos votos.
Do
DCE, eu fui do DCE. Entre 87, quando entrei, até 91. Tinha o
Congresso que era anual e tinha o CEU, mensal. Era ele que controlava
o DCE; ocorria lá nos porões do prédio perto do Batalhão da ROTA.
Nesse prédio funcionava a FATEC e ela ainda fazia parte da UNESP. A
gente tinha contato com a USP e com a UNICAMP. O Hamilton Lacerda era
do DCE da UNICAMP, hoje ele trabalha com o Mercadante, ele já era
próximo ao PT. Tinha contato com a USP também, mas com a UNICAMP
era mais forte. Eu lembro da camiseta: 'USP, UNESP, UNICAMP:
reestruturação das universidade públicas'. A gente fazia reuniões,
ia à USP, ia à UNICAMP; mas não tinham tantas, umas duas por ano.
O Fórum das Seis não existia. O PT dominava tanto o DCE da USP
quanto o da UNICAMP. O PT não era isso aí, o PT era o partido da
ética, da luta e toda a esquerda estava nele. Você não sabe como a
LIBELU [Liberdade e Luta,
corrente trotskista do PT, de forte inserção estudantil] era
forte, porque era muito forte. Por isso tudo, os deputados eram
próximos, falava que era do movimento estudantil e logo vinha o
deputado. O PT não dominou o DCE da UNESP por nossa conta, eles
chamavam a gente de independentes, e nós resistíamos muito.
Sabíamos que se dominasse, perderíamos o DCE; todos sabiam, todos
lutavam, todos se opunham. E não que não fossemos simpáticos
àquele PT, a gente apoiou o Lula contra o Collor; dizíamos 'o
vermelho contra o COLLORido', já que ele representava as velhas
oligarquias e o coronelismo. Tínhamos simpatias ao PT e até me
convidaram para entrar, mas eu dizia que só depois, eu queria ser
independente no movimento estudantil. Muitos estudantes se engajaram
na eleição do Lula. Era grande na universidade. Aqui, quem apoiava
o Collor não tinha coragem de dar a cara.
Muita
gente era do PT. Mas a gente, que eles chamavam de independentes,
lutávamos muito contra o PT. A gente sabia que tinha polícia, então
mentíamos, às vezes; dizíamos que faríamos o ato em lugar e a
gente ia pra outro. Pra articular nos Congressos, falava que ia 'no
banheiro'. O PCdoB também era difícil, ele queria dominar, fraudava
listas. Lembro que, em um Congresso, vimos a lista de eleição dos
delegados deles; sabíamos que eramos fraudados, e só barramos
porque eu conhecia uma menina que o nome estava na lista, mas que não
tinha assinado e ela estava no Congresso. A gente conseguiu impedir
que o PCdoB ganhasse, mas foi somente por um voto! Eles ficaram
raivosos, pediram pra recontar, mas foi um voto só mesmo. A
Convergência Socialista [corrente
do PT que originou o PSTU] era pequena, lembro que tinha em
Araraquara. O PCdoB tinha em Franca e Bauru. Em Araraquara tinha o PT
e a Convergência. Sabíamos que existia a Causa Operária [corrente
do PT que originou o PCO], mas não tinha aqui. As
correntes estavam nascendo, se estruturando.
O
movimento estudantil da UNESP participava da UNE. Eu conheci o
Orlando Silva [ex-ministro dos
esportes, ex-presidente da UNE] e o Linderbergh [senador
pelo estado do Rio de Janeiro, ex-presidente da UNE; eles
vieram muto pra Marília, pra nos convencer a entrar na UNE, mas a
gente não queria. O Jorge me disse anos depois: 'viu?!, se tivesse
ido pra UNE hoje era ministro'. Eu pensava que a UNE era perda de
tempo, não tinha frutos, era só a carteirinha. A UNE só fez algo
na ditadura, e depois só serviu para formar quadros e eleitores.
A
população era ainda muito reprimida, como eu te disse, ainda não
tinha acabado a ditadura. Foi muito aos poucos que o povo aprendeu a
participar politicamente, até porque a democratização veio de
cima.
A
queda da URSS não foi muito sentida pelo movimento estudantil. Não
que a gente não soubesse que o capitalismo iria tomar tudo e fazer a
merda que faz. Nem que a gente não discutisse as questões
internacionais. Mas vinhamos de uma ditadura, o país era imenso,
então a realidade nacional era muito mais presente.
Depois
que a gente conquistou a moradia, sabíamos que o próximo passo era
o R.U. Pensávamos que se o CEASA fornecesse diretamente, a
universidade pagaria o preço de custo. Queríamos também solucionar
a questão da biblioteca, porque faltavam muitos livros. Não se
debatiam a questão das cotas, que tem de ter, pela questão
histórica. Mas a gente já pensava na expansão e melhoria da
Moradia
Depois,
veio o FHC. O FHC veio com a LDB e ela veio pra disciplinar a
universidade, porque eles pensavam igual a gente: que como estava não dava mais. Mas era a gente, e eram eles...
[FIM
DO DEPOIMENTO]
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